Trecho extraído do livro: Luke’s Jewish Eschatology: The National Restoration of Israel in Luke-Acts
Estudiosos do Novo Testamento há muito tempo notam a ênfase judaica da “narrativa da infância” em Lucas (1:5 — 2:52). Alguns até julgaram que certas partes da narrativa foram formuladas originalmente em hebraico ou aramaico. Seja qual for o caso, a narrativa e o conteúdo de Lucas 1:5 — 2:52 carregam um estilo distintamente bíblico característico da Septuaginta, que é atestado em outro lugares em Lucas e Atos. É muito significativo que numerosas proclamações antecipando a salvação de Israel aparecem na abertura do evangelho de Lucas. Certamente, Lucas também sugere uma extensão universal da salvação às nações (2:32), prenunciando assim a missão aos gentios mais tarde relatada em Atos. No entanto, a salvação dos gentios é intrínseca à própria restauração de Israel, que continua sendo a principal preocupação de Lucas. A linguagem, o estilo, os personagens e o uso das Escrituras e tradições judaicas em Lucas 1:5 — 2:52 chamam a atenção para a questão do futuro de Israel.
A questão da restauração de Israel não é peculiar à narrativa da infância em Lucas. Lucas, ao contrário, introduz e depois desenvolve esse tema ao narrar sua história. As profecias anunciadas na narrativa da infância encontram, assim, seu cumprimento parcial na narração que se segue. Por exemplo, João, o Precursor, prepara o caminho para a restauração de Israel, assim como o anjo Gabriel e o profeta Zacarias haviam predito (1:16 — 17, 76 — 79; 3:1 — 20). Jesus também inicia a sua missão salvífica em nome de Israel e até assume as suas prerrogativas davídicas em conformidade com os oráculos proclamados antes e depois da sua concepção (1,31–33; 2,29–35). Finalmente, Lucas integra a seção da infância, com foco na futura salvação de Israel, na estrutura narrativa de Lucas-Atos. O Evangelho de Lucas começa e termina no templo de Jerusalém, enquanto Atos também se concentra no templo desde o início. O mesmo é verdade para a cidade-mãe que abriga o amado templo, Jerusalém.
Na narrativa da infância, a família de Jesus visita repetidamente a capital judaica, assim como Jesus faz mais tarde em sua idade adulta. Na verdade, Lucas situa praticamente todos os eventos investidos de significado escatológico ou soteriológico dentro da cidade santa. Outros exemplos poderiam ser facilmente ensaiados, não apenas fortalecendo a relação da narrativa da infância com o restante de Lucas-Atos, mas também destacando a importância da salvação de Israel para Lucas. Lucas introduz e incorpora sua narrativa na história contínua de Israel. Isso permanece verdadeiro mesmo que as histórias da infância tenham sido adicionadas posteriormente a uma forma mais primitiva de Lucas. Nos níveis narrativo e de composição, Lucas 1:5 — 2:52 prova ser parte integrante do restante de Lucas-Atos. Quando lida como um todo, a narrativa da infância não pode ser removida de Lucas-Atos, assim como a história de Jesus não pode ser separada da história de Israel. O interesse de Lucas em Israel é completo. Tudo isso sugere fortemente que a questão de Atos 1:6 foi algo que Lucas e muitos seguidores de Cristo judeus de seu tempo não descartaram levianamente.
Devemos considerar, portanto, o empreendimento literário de Lucas em relação à situação político-social no terreno que condicionou sua preocupação com a questão da restauração político-nacional de Israel. Essa realidade incluiu as consequências da Primeira Revolta Judaica, que teve enormes ramificações para o povo judeu. Lucas e outros seguidores de Jesus não poderiam ter permanecido totalmente indiferentes a esse significativo desenvolvimento político, pois o movimento de Jesus ainda estava formulando sua identidade dentro de uma estrutura judaica. A seguir, aprecio o vocabulário empregado na narrativa da infância de Lucas para descrever a libertação de Israel à luz dos primeiros textos judaicos e em relação às circunstâncias políticas mencionadas. Notavelmente, Lucas usa o vocabulário judaico tradicional – sem redefinir o significado dos termos – que concebe a libertação de Israel em termos político-nacionais.
O VOCABULÁRIO SOTERIOLÓGICO NA NARRATIVA DA INFÂNCIA EM LUCAS
Orações, hinos e discursos espalhados pela narrativa da infância de Lucas anunciam Jesus com grande entusiasmo como aquele destinado a trazer a liberdade para Israel. Essas aclamações apresentam Jesus como um libertador político de seu próprio povo. Vários termos e conceitos-chave ilustram esse papel. Uma das mais óbvias é a proclamação de Jesus como herdeiro do trono de Davi, que constitui um tema central na anunciação. Gabriel declara a Maria:
“Este será grande e será chamado filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai. Ele reinará para sempre na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim” (1:32 – 33).
Segundo esta passagem Jesus ocupará o trono do maior rei de Israel, Davi, que se instalou em Jerusalém, cidade que estabeleceu como a capital do reino de Israel. Assim como Davi governou sobre todo o Israel, Jesus governará a “casa de Jacó”, uma frase que denota a plenitude nacional de Israel, que descende dos doze filhos de Jacó [9]. Além disso, a passagem de Lucas sublinha que Jesus administrará um reino que durará para sempre. Nada dito aqui indica que este reino ficará ou permanecerá em um reino celestial. A declaração de Gabriel é lida naturalmente como uma antecipação do cumprimento das tão esperadas esperanças nacionais de ver uma antiga glória restabelecida em solo terrestre entre o povo de Israel.
O papel messiânico estabelecido programaticamente na anunciação é estendido pela linguagem do hino de louvor de Maria, conhecido como Magnificat nos círculos cristãos ocidentais ou como a Ode de Theotokos na tradição bizantina (Lucas 1:46–55). Nesta passagem chave, Maria primeiro exalta a Deus como “salvador” (v. 47: sōtēr) porque deu atenção à condição “humilde” (v. 48: tapeinōsin) de sua serva. Deus é designado aqui como salvador por promover Maria como a mãe do futuro rei davídico de Israel. Maria continua louvando a Deus por intervir em favor de outros que se encontram em posições de fraqueza social, econômica e política:
“Derrubou governantes dos seus tronos, mas exaltou os humildes. Encheu de coisas boas os famintos, mas despediu de mãos vazias os ricos.” (vv. 52–53).
Os governantes e os ricos são derrubados; os humildes e os famintos são exaltados. Nesse par de versículos, a salvação é concebida como parte de um programa econômico, social e político. Os humildes e famintos descritos nos vv. 52–53 provavelmente pertencem à nação de Israel, uma vez que Maria elogia o envolvimento de Deus na história em relação específica ao seu próprio povo: “Ele ajudou [antelabeto] seu servo Israel, a lembrar-se de sua misericórdia, como falou aos nossos antepassados, a Abraão e à sua descendência para sempre” (vv. 54–55). A linguagem aqui, como o restante do cântico de Maria, deve profundamente às Escrituras judaicas, em particular ao livro dos Salmos. Lucas 1:54 afirma que Deus “ajudou” seu servo Israel, um verbo que aparece tanto nas Escrituras hebraicas (azar) e em sua antiga tradução grega para descrever a poderosa intervenção de Deus contra a opressão terrena. Deus também é chamado de “ajudador” de Israel, o “guardião de Israel que nunca descansa e nem dorme” (Sl 120:1–2, 4). Como ajudador, Deus salva, ou seja, resgata Israel de situações perigosas e de risco de vida no mundo atual. A Maria de Lucas sugere que chegou a hora da libertação de Israel de sua situação precária. Assim como Deus “olhou para a humildade de sua serva” Maria (v. 48a: epeblepsen epi tēn tapeinōsin tēs doulēs autou), assim também Deus “ajudou Israel, seu servo” (v. 54a: antelabeto Israēl pagos autou). A exaltação de Maria prenuncia a glorificação de Israel (cf. Lc 2,32).
A conexão entre as condições de Maria e de Israel é reforçada pela repetição da palavra “misericórdia” (eleos) no cântico de Maria. Imediatamente após exaltar a Deus pelo favor que lhe foi concedido, Maria afirma que a “misericórdia de Deus é de geração em geração para aqueles que o temem” (v. 50). Posteriormente, Maria afirma que Deus veio em socorro de Israel “lembrando-se de sua misericórdia” (v. 54). Enquanto Maria contempla sua própria experiência, ela considera a misericórdia divina mostrada a Israel ao longo da história. Consequentemente, a frase “aqueles que o temem” (tois phoboumenois auton) provavelmente deve ser tomada em referência ao povo de Israel, e não a um grupo eleito dentro ou fora de Israel. Nas Escrituras Judaicas, todo Israel deveria temer a Deus: “Os que temem ao Senhor o louvam! Toda a semente de Jacó o glorifica! Que toda a semente de Israel o tema” (Sl 22:23 LXX). O povo de Israel expressa tal “temor” por meio da obediência fiel a seu Deus. É claro que Israel falhou coletivamente nesse aspecto, mas, de acordo com Jeremias, Deus um dia escreverá o “temor” no próprio coração dos israelitas para que todos observem fielmente a aliança (renovada) na terra restaurada de seus ancestrais. (32:40–42).
Visto que Lucas mal começou a contar a história do evangelho, seria prematuro ampliar ou restringir a aplicação de “aqueles que o temem” sendo direcionado aos gentios, que mal são mencionados na narrativa da infância em Lucas, por um lado, ou ao outro lado, os seguidores judeus de Jesus, um grupo remanescente dentro do povo escolhido. A totalidade do louvor de Maria expressa esperança entusiástica pela libertação de Israel (v. 54) e dificilmente sugere uma divisão ou separação dentro de Israel. As pessoas impotentes mencionadas no vv. 51–53 representam melhor a condição sócio-política da nação judaica como um todo, que historicamente foi subjugada a potências estrangeiras, mais recentemente durante sua humilhante derrota para Roma. Usando a linguagem mais tradicional encontrada nas Escrituras para descrever a libertação de Israel, o cântico de Maria proclama que Deus resgatará Israel com um “braço poderoso” (v. 51).
Uma declaração paralela sobre a “misericórdia” divina aparece no hino de louvor de Zacarias, o chamado Benedictus (Lucas 1:68–79), e sublinha ainda mais que Israel é o alvo principal da ação favorável de Deus. Zacarias exalta a Deus por “mostrar misericórdia” (poiēsai eleos) para com “nossos antepassados” (paterōn hemōn) e por “lembrar-se da santa aliança” (mnēsthēnai diathēkēs hagias) jurada a Abraão (Lucas 1:72–73a). Para ter certeza, Deus prometeu a Abraão que através de sua semente todas as nações seriam abençoadas (Gn 22:18; cf. Gn 12:3). Atos mais tarde relembra essa promessa de proporção internacional (3:25). Consequentemente, alguns exegetas têm argumentado que, no nível macrotextual de Lucas-Atos, o hino de Zacarias aponta além dos limites de Israel para a missão dos gentios. Esta leitura expansiva do hino de Zacarias requer alguma qualificação. Em primeiro lugar, o olhar escatológico de Zacarias está sobre Israel. Seu louvor começa abençoando “o Deus de Israel” por trazer “livramento ao seu povo” (v. 68). Os gentios não estão no âmbito deste salmo de Lucas, exceto como inimigos de quem Deus resgatará Israel em cumprimento de seu juramento a Abraão (v. 74; cf. v. 71). Mesmo a promessa abraâmica de bênção para todas as nações, que aparece mais tarde em Atos, permanece centrada em Israel. Esta promessa é relatada por um judeu (Pedro) a uma audiência judaica reunida em Jerusalém. Pedro enfatiza que eles são os filhos da “aliança que Deus deu a seus pais” (Atos 3:25a: diathēkēs hēs dietheto ho theos pros tous pateras hymon). Essa linguagem é paralela à lembrança de Zacarias da aliança (diathēkēs) que Deus fez com “nossos ancestrais” (paterōn hemōn). Além disso, Pedro enfatiza que esta aliança ancestral, incluindo a promessa de bênção para todas as nações, é destinada antes de tudo para o bem de Israel: “Porque primeiro Deus ressuscitou o seu servo, enviou-o para te abençoar” ( v. 26). Assim, até mesmo a salvação dos gentios é concebida como benéfica para Israel. Finalmente, de acordo com o hino de Zacarias, a aliança feita com os ancestrais de Israel é sagrada (v. 72), destacando ainda mais o chamado especial de Israel para servir a Deus “em santidade e justiça” (v. 75).
A aliança feita com Abraão prometia que sua semente se tornaria uma grande nação, possuiria terras e abençoaria todas as nações (Gn 12:2–3; 15:18–21; 17:4–8; 22:17–18). A narrativa da infância em Lucas não menciona nenhuma dessas promessas da aliança, mas devido ao seu estilo e conteúdo tradicionais, podemos suspeitar que Lucas esperava que Deus cumprisse todas elas. De fato, os judeus já constituíam uma nação numerosa que se espalhava pelo Mediterrâneo na época de Lucas. No entanto, eles foram despojados de suas terras e viviam sob o jugo das nações. A promessa de que viveriam permanentemente em segurança em sua terra natal, livres da dominação estrangeira, como fizeram seus ancestrais depois que Moisés os conduziu para fora do Egito, não foi cumprida. Muitos judeus do primeiro século, portanto, antes e depois dos anos 70, esperavam que seu Deus se lembrasse e os libertasse como Deus havia feito no passado bíblico. O Liber antiquitatum biblicarum (LAB), uma obra judaica pós-70, reconta o glorioso êxodo durante os dias de Moisés, ao mesmo tempo em que prevê uma redenção futura para Israel. Em um discurso de despedida, Moisés diz a seus companheiros israelitas:
Mas eu sei que vós se levantarão e abandonarão as palavras estabelecidas para vós através de mim, e Deus ficará zangado com vocês e os abandonará e partirá de sua terra. E ele trará sobre vós os vossos inimigos, e eles vos dominarão, mas não para sempre, porque se lembrará da aliança que estabeleceu com os vossos pais. (LAB 19:2).
Aqui, Moisés prevê a subjugação de seu próprio povo ao domínio estrangeiro. Mas a opressão não durará para sempre. Deus um dia se lembrará da aliança estabelecida com os ancestrais de Israel, pondo fim à submissão de Israel e dando início à restauração nacional. Curiosamente, Lucas 1:54–55 e 72–73a destacam o tema da lembrança divina. Lucas, além disso, descreve essa lembrança salvífica e pactual como “misericórdia” (eleos) em ação. Deus pretende “fazer misericórdia” (1:72: poiēsai eleos) ou “lembrar-se da misericórdia” (1:54: mnēsthēnai eleous). A tradição cristã dominante associa a misericórdia predominantemente à graça, ela mesma exemplificada na morte expiatória de Jesus na cruz. Esta graça divina apaga o pecado, concedendo ao crente a vida eterna. Esse entendimento comum está enraizado no solo do Novo Testamento. Por exemplo, a Carta a Tito afirma que Jesus Cristo é “salvador” porque “ele se entregou por nós para nos lavar de toda iniquidade” (2:13–14). O autor de Tito lembra a sua audiência que eles “foram iníquos, desobedientes, desviados, escravos das paixões e de toda espécie de prazeres, vivendo no mal e na inveja, odiosos, odiando-se uns aos outros” (3:3). Felizmente, Deus “nos salvou de acordo com sua misericórdia [eleos] por meio de uma regeneração e renovação do espírito sagrado. . . para que, justificados pela sua graça [chariti], nos tornássemos herdeiros segundo a esperança da vida eterna” (3:5–7). Aqui a misericórdia e a graça aparecem muito próximas para explicar o processo que leva à salvação eterna tornada possível pela morte de Jesus Cristo.
Lucas 1:72, no entanto, segue uma formulação mais tradicional. Sua compreensão da dispensação da misericórdia deriva, em última análise, das Escrituras Hebraicas. A construção grega poiēsai eleos + meta em Lucas 1:72 corresponde palavra por palavra à construção hebraica asah Chesed im. A palavra hebraica Chesed é muitas vezes traduzida nas traduções inglesas da Bíblia como “bondade” ou “misericórdia”. Mas isso pode ser enganoso. O termo não conota meramente uma atitude ou emoção. Frequentemente descreve a fidelidade ou bondade divina em ação. Por exemplo, Sl 100:5 afirma que “YHWH é bom, para sempre é seu chesed, e sua fidelidade é de geração em geração”. Em alguns contextos, chesed aparece ao lado de palavras que expressam justiça e retidão. Assim, Sl 33:5 declara que YHWH “ama a retidão [tsedaqah] e a justiça [mishpat], a chesed de YHWH enche a terra”. O Salmo 136, que é recitado todas as manhãs de sábado na liturgia judaica, louva a YHWH nada menos que vinte e seis vezes com o refrão “porque sua misericórdia dura para sempre” (ki le’olam hasdo). Antes de cada refrão, o salmo especifica atos de chesed divino. A existência dos céus e da terra é o resultado do chesed duradouro de YHWH (Sl 136:4–9). O chesed divino se manifesta especialmente na história da salvação, particularmente na redenção de Israel da escravidão no Egito. O salmo elogia YHWH por mostrar chesed em matar os primogênitos egípcios (v. 10); tirando Israel do Egito com mão forte e braço poderoso (vv. 11–12); dividindo o mar vermelho(v. 13); afogando Faraó e seu exército (v. 15); protegendo os israelitas durante suas caminhadas no deserto; derrubando reis poderosos (vv. 16–20); e conduzindo Israel à terra de Canaã (v. 22). Do ponto de vista israelita, esses atos “chesédicos” eram demonstrações bem-vindas da fidelidade e bondade de YHWH para com Israel. Terminologicamente, não podemos nos aproximar mais da linguagem dos hinos de Lucas. O hebraico zakar corresponde ao grego mnēsthēnai que aparece em Lucas 1:54 e 1:72, ambos apresentando os eleos (= chesed) de Deus em nome de Israel. No Salmo 136:23 LXX, o hebraico shephel é traduzido como tapeinōsis, a palavra usada por Maria para descrever sua condição humilde, que Deus reverteu (Lucas 1:48). Tanto os hinos de Zacarias quanto os de Maria proclamam assim o retorno dos divinos eleos para o benefício de Israel.
Por um desejo imutável de garantir o bem de Israel, Deus agora pretende reencenar a chesed divina. Deus “lembrou-se de sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó” como nos dias em que os israelitas saíram do Egito para a terra prometida (Êxodo 2:24). A lembrança divina, como sempre, se traduz em ação concreta que cumpre as promessas da aliança de Deus. Um novo Êxodo que libertará a nação de Israel está no horizonte.
Uma restauração nacional-política é ainda sugerida por outro termo-chave que aparece na abertura do hino de Zacarias: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque olhou com benevolência para Israel e trouxe libertação [lytrōsin] ao seu povo” (1:68). Mais tarde na narrativa da infância, a palavra grega lytrōsin aparece novamente quando a profetisa Ana vê o recém-nascido Jesus no templo: “Naquele momento ela veio e começou a louvar a Deus e a falar sobre a criança a todos os que esperavam a libertação [lytrosin] de Jerusalém” (2:38). Em outro lugar, Lucas emprega duas outras palavras com o mesmo radical grego. Durante sua estada final em Jerusalém, Jesus informa seus discípulos sobre a destruição do templo e os eventos cataclísmicos que precederão sua “libertação” (apolytrōsis) escatológica quando o Filho do Homem vier (21:28). Finalmente, em Lucas 24:21, dois discípulos a caminho de Emaús confessam com grande desapontamento que pensaram que Jesus “livraria” (lytrousthai) Israel.
O substantivo lytrōsis e o verbo lytroō são frequentemente traduzidos em traduções para o inglês como “redenção” e “resgate”, respectivamente. Assim como a palavra “salvação”, o termo “redenção” geralmente tem um significado restrito para conotar a libertação do pecado necessária para a obtenção da vida eterna. Essa compreensão da redenção é reconhecidamente baseada na interpretação da morte de Jesus encontrada no Novo Testamento. Por exemplo, 1 Pedro 1:18–19 lembra a sua audiência do que a morte expiatória de Cristo realizou redenção: “Sabendo que fostes redimidos [elytrōthēte] não com coisas perecíveis, como ouro ou prata, de seu modo de vida vão transmitido por vossos pais, mas com precioso sangue, como de um cordeiro sem defeito ”. A libertação dos pecados também é um tema importante em Lucas-Atos. Os judeus, não apenas os gentios, precisam se voltar para Deus para receber o perdão pelos muitos pecados que cometeram. Embora eles não sejam pecadores idólatras per se como os gentios, os israelitas como um povo continuamente falham em seu chamado para a aliança. Isso parece ser reconhecido por Pedro em Atos quando ele confessa que nem sua geração nem seus ancestrais foram capazes de suportar o “jugo” da Torá (15:10). Suas transgressões trazem doenças e outras debilitações (Lucas 5:18– 26). Eles até colocam os filhos de Israel sob o poder demoníaco, a fonte de várias doenças psicossomáticas (por exemplo, Lucas 13:16). Portanto, o perdão e a libertação dos pecados constituem um passo necessário para alcançar a restauração de Israel. João, o Precursor, exorta Israel ao arrependimento (Lucas 3:2–3), enquanto Jesus repete o mesmo chamado (Lucas 5:32) e anuncia a libertação do povo judeu do cativeiro demoníaco trazido por suas transgressões (Lucas 4:18–19). ). Após a ressurreição de Jesus, Israel é novamente admoestado ao arrependimento, desta vez pelos apóstolos, que também proclamam Jesus como o Messias. Se Israel atendesse ao seu chamado, a restauração viria imediatamente (Atos 3:19–20). O fracasso em aproveitar esse momento, no entanto, adia a redenção de Israel por enquanto.
A libertação dos pecados e do cativeiro satânico não esgota a compreensão de Lucas sobre a redenção. A Septuaginta, tão apreciada por Lucas, frequentemente emprega lytrōsis, apolytrōsis e lytroō para traduzir palavras derivadas do hebraico ga’al e padah. Nas Escrituras Hebraicas, ga’al e padah muitas vezes se sobrepõem em significado, especialmente ao descrever a libertação de Israel da escravidão no Egito. Assim, quando Deus recorda a aliança feita com os patriarcas de Israel, Deus conforta os filhos de Israel, prometendo: “Eu vos livrarei da escravidão e vos redimirei ga’alti/LXX: lytrōsomai com braço estendido e com grandes juízos” (Êxodo 6:6). Aqui a Septuaginta traduz o verbo hebraico ga’al com lytrōo para anunciar a redenção de Israel da escravidão. Em Êxodo 15 o verbo grego lytrōo traduz ga’al novamente. Os filhos de Israel cantam louvores a seu Deus por conduzi-los com segurança através do mar: “Em tua misericórdia, guiaste este povo que redimiste ga’alta/LXX: elytrōsō” (15:13). Da mesma forma, lytrōo traduz o hebraico padah em passagens que relatam o êxodo de Israel no Egito: “O SENHOR te tirou com mão forte e te livrou yifdecha/LXX: elytrōsato] da casa da escravidão” (Dt 7:8 ).
O mesmo pacote de palavras aparece na literatura profética para anunciar o fim do exílio babilônico. Isaías prevê o retorno de Israel à terra como uma alegre redenção do exílio: “E os resgatados peduyei/LXX: lelytrōmenois] do SENHOR retornarão e virão a Sião com alegria!” (Is 51:11). Da mesma forma, Jeremias usa ambos os verbos hebraicos para falar da reunião de Israel do exílio:
Ouvi a palavra de YHWH, ó nações, e anunciai às ilhas de longe, e dizei: Aquele que dispersou a Israel os congregará e os guardará como pastor ao seu rebanho. Pois YHWH redimiu padah/LXX: elytrōsato Jacó e o livrou ga’al de uma mão mais poderosa do que ele. (31:10–11)
As obras judaicas posteriores do Segundo Templo continuam a usar essa terminologia com significados e contextos semelhantes em mente. Por exemplo, os Salmos de Salomão expressam o anseio por um libertador (lytroumenou) que reuna os dispersos de Israel (8:30).Da mesma forma, em 1 Macabeus, Judas, o Macabeu, convoca seus soldados para lutar, declarando que Deus libertará (lytroumenos) Israel em seus dias, assim como fez no Mar Vermelho (4:11). Nestes exemplos, a redenção é um ato concreto de Deus, baseado na aliança com Israel (1 Mac 4,10), que liberta Israel de seus inimigos terrenos. A conotação política e terrestre de lytrōsis também persistiu no tempo de Lucas. Moedas cunhadas durante as revoltas judaicas expressam vividamente um desejo de liberdade política de Roma, contendo construções hebraicas como ge’ulat tsion (redenção de Sião), ge’ulat Yisrael (redenção de Israel) ou herut tsion (liberdade de Sião).
É notável que Lucas tenha uma linguagem semelhante em conexão com a redenção de Israel, dadas as suas conotações políticas-nacionais. Lucas, no entanto, fala de (apo)lytrōsis sempre em conexão com Jerusalém e o povo judeu. Zacarias diz: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel”, aquele que traz “livramento ao seu povo” (1:68). Da mesma forma, Ana expressa alegria pela libertação que Jesus concederá a Jerusalém (2:38). Quando Jesus fala do Filho do Homem vindo para trazer apolytrōsis, ele o faz ao abordar o destino de Jerusalém e do povo judeu (21:28). Finalmente, a libertação esperada pelos discípulos no caminho de Emaús diz respeito à nação de Israel (24:21). A esperança pela liberdade coletiva de Israel nunca é negada nessas passagens, nem mesmo quando Jesus repreende aqueles discípulos por sua incredulidade. Jesus apenas esclarece que era necessário que o Messias sofresse e ressuscitasse dos mortos antes que tempos mais gloriosos pudessem vir a Israel (Lucas 24:25–27).
Outro termo-chave de Lucas 1–2 se encaixa perfeitamente nessa perspectiva. O hino de Zacarias combina lytrōsis com o verbo episkeptomai: Deus “observou [epeskepsato] e trouxe livramento [lytrōsis] ao seu povo” (Lucas 1:68). A Septuaginta usa episkeptomai para traduzir o paqad hebraico em passagens que proclamam o compromisso de Deus com as promessas da aliança com Israel ou descrevem a assistência de Deus a indivíduos específicos em tempos de necessidade. Deus assim “prestou atenção” ao sofrimento de Israel no Egito (paqad/episkeptomai em Êxodo 3:16; 4:31; 13:19). Mais tarde na história de Israel, Deus prometeu “intervir” (Jr 29:10 ephqod/Jer 36:10 LXX: episkepsomai) para acabar com o exílio babilônico. Gen 21:1 e 1 Sam 2:21 também são notáveis, eles relembram o cumprimento das promessas divinas de dar filhos a Sara e Ana. Em ambos os casos, Deus “assegurou” paqad; LXX: epeskepsato) que essas mulheres tivessem filhos, apesar do que pareciam circunstâncias intransponíveis. Essas histórias de nascimento contêm vários paralelos com a narrativa da infância em Lucas. Como Abraão e Sara, Zacarias e Isabel não podiam ter filhos por causa de sua idade avançada (Gn 18:11–12; Lc 1:7). Como Ana, Maria louvou a Deus pelo filho que lhe foi dado, e os paralelos entre as duas orações são frequentemente notados. Como Isaque e Samuel, João e Jesus são filhos excepcionais destinados a levar adiante o plano divino de fazer de Israel uma grande nação. De fato, Zacarias sente que chegou um momento especial na história de Israel quando ele abençoa a Deus pelo futuro nascimento de seu filho. Ele percebe que João e aquele que virá depois dele estão destinados a realizar grandes coisas em nome de Israel. Deus está finalmente olhando para Israel, percebendo sua situação e preparando uma nova visita para libertar Israel.
Salvação Universal e Restauração Nacional na Profecia de Simeão
Lucas se concentra principalmente no destino corporativo nacional de Israel. A concentração de Lucas no bem-estar de Israel, entretanto, não o impede de considerar o bem-estar dos gentios. Em Lucas 2:29–32, Lucas se refere explicitamente a salvação dos gentios. Simeão, a quem Lucas destaca como um judeu piedoso esperando o “consolo de Israel” (v. 25), prediz que Jesus trará “luz para revelação às nações e glória ao teu povo Israel” (v. 32). Lucas dificilmente está redefinindo Israel ou a natureza de sua restauração ao incluir os gentios no panorama escatológico. Lucas distingue as nações do povo de Israel: trata-se das nações (ethnē) e do povo (laos) de Israel, não de um Israel reconfigurado ou ampliado para incluir não-judeus. As nações não transgridem a identidade nacional israelita. Cada grupo mantém sua forma peculiar. Lucas é consistente sobre este assunto ao longo de seus escritos. Em Lucas-Atos, laos significa o povo de Israel, enquanto as nações são compostas de gentios. Juntos, gentios salvos e o Israel remanescente constituem a ekklēsia de Deus. Ambas as entidades experimentarão a salvação pelo mesmo meio, o ministério salvífico de Jesus, mas em termos diferentes: a revelação virá às nações, mas a glória virá a Israel (cf. Rm 9,4: “são aos israelitas a quem pertence . . . A glória”). Com efeito, parece que a salvação dos primeiros implica a exaltação dos segundos. Isto porque a salvação das nações faz parte do processo que conduz à restauração de Israel, cumprindo ao mesmo tempo a vocação de Israel de ser luz para o mundo. Essa compreensão da restauração de Israel está em harmonia com a profecia de Isaías:
“Disse-me: “Não basta que sejas meu servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os fugitivos de Israel; vou fazer de ti a luz das nações, para propagar minha salvação até os confins da terra” (Isaías 49:6).
Essa profecia, que pode muito bem ter inspirado a composição do próprio Lucas, pertence a Segunda parte de Isaías (capítulos 40–55), um documento que responde ao exílio babilônico. A passagem prevê o reagrupamento das tribos de Jacó, uma restauração da comunidade de Israel. Ao mesmo tempo, um futuro ainda maior aguarda que trará fama internacional a Israel, pois a salvação se estende por toda a terra (Is 42:6; 51:4). Israel, como servo de Deus, cumprirá uma tarefa especial de trazer luz às nações. Um cenário semelhante também é previsto na Terceira parte de Isaías (capítulos 56–66). De acordo com Isaías 62:1, Deus não pode reter a salvação de Sião: “Por amor de Sião não me calarei, e por amor de Jerusalém não me aquietarei, até que saia a sua justiça como um resplendor, e a sua salvação, como uma tocha acesa.As nações, diz-se, verão a vindicação de Jerusalém, sua “glória” (hebraico: kavod; grego: doxa; Is 62:2). No entanto, em última análise, a glorificação de Israel traz glória ao seu Deus, tornando o “nome de Deus glorioso” (v. 14).
Esse tipo de reflexão sobre a interação entre a salvação universal e a restauração de Israel não cessou após a conclusão do livro de Isaías. Ele ressurgiu quando o povo judeu se viu em circunstâncias muito familiares. Nos dias de Lucas, os romanos, como os babilônios, subjugaram Judá, queimaram o templo e enviaram muitos para o exílio. Os judeus tiveram novamente que dar sentido à tragédia incompreensível. Naturalmente, muitos compararam sua situação aos tempos da Babilônia. Eles encontraram consolo em Isaías e em outros escritos proféticos que supostamente haviam predito suas circunstâncias e, ao fazê-lo, recapturaram a dialética nacional-universal encontrada ali. Segundo Baruque, uma obra contemporânea de Lucas-Atos, repete o tema universal da segunda parte de Isaías. Israel está no exílio para que seja uma luz para as nações. Foi espalhado mais uma vez para “fazer o bem às nações” com as quais entra em contato (1:4). A dispersão de Israel leva dezenas de não-judeus a abandonar sua “vaidade” e encontrar refúgio sob as asas de Deus, uma imagem que representa a conversão dos gentios. O Liber antiquitatum biblicarum (Pseudo-Filo, Livro de Antiguidades Bíblicas) combina temas universalistas e exclusivistas semelhantes em sua recontagem da revelação da Torá. No Sinai, Deus declarou: “Darei uma luz ao mundo e iluminarei suas habitações e estabelecerei minha aliança com os seres humanos e glorificarei meu povo acima de todas as nações” (11:1). LAB (Liber antiquitatum biblicarum) fala aqui da revelação sinaítica como uma “luz para o mundo”. Isso lembra a menção de Lucas de “uma luz para revelação às nações” (cum filiis hominum 2:32). Ao mesmo tempo em que LAB concebe a Torá como luz universal, prevê a glorificação de Israel acima de todas as nações (glorificabo populum meum super omnes gentes). A versão do cântico de Ana (1 Sam 2:1–10) em LAB também evoca esta afirmação conjunta ao anunciar Samuel como uma luz para seu próprio povo e instrutor das nações. Enquanto Ana louva a Deus, ela primeiro chama a atenção do mundo inteiro: “Ouçam a minha voz, todas as nações [pessoas], e ouçam a minha palavra, todos os reinos” (51:3). Ana então profetiza que seu filho iluminará seu próprio povo e “anunciará estatutos às nações” (51:3). O hino continua a falar em termos universais: “E assim falarei abertamente as minhas palavras, porque de mim surgirá a ordenança do SENHOR, e todos os homens encontrarão a verdade. . . . [Deleite-se no louvor, pois a luz da qual nascerá a sabedoria surgirá” (51:4). Ao mesmo tempo, a missão de Samuel está continuamente relacionada a Israel: “Que meu filho fique aqui e sirva até que se torne uma luz para esta nação” (51:6; cf. 51:7).
Lucas difere de LAB e 2 Baruque principalmente em sua afirmação messiânica de que a revelação está chegando às nações graças a Jesus. Como argumentarei mais tarde, Lucas provavelmente entendeu Is 49:6 e outras passagens bíblicas como significando que um indivíduo agindo como servo de YHWH cumpriria essa salvação de foco duplo para restaurar Israel e salvar os gentios. Essa missão, no entanto, seria realizada pelo servo de YHWH em nome e como Israel, com quem o servo isaânico permanece intimamente identificado. O cumprimento dessa missão isaânica por Jesus traria, em última análise, o “consolo de Israel”, de acordo com Lucas 2:25, e a “libertação de Jerusalém”, de acordo com Lucas 2:38. Como Richard Bauckham aponta, essas frases refletem a tradição massorética de Isaías 52:9b, que afirma que “YHWH consolou seu povo e redimiu Jerusalém” [Bauckham, “The Restoration of Israel in Luke-Acts,” pg 456]. Portanto, Simeão se alegra porque acredita que a luz que brilha sobre as nações se refletirá sobre Israel. À medida que as nações se submetem ao senhorio de Jesus, elas cessarão de oprimir Israel e se unirão a ele na adoração do único Deus verdadeiro. Um povo humilhado pelos romanos será finalmente consolado e glorificado aos olhos de toda a terra.
Simeão, no entanto, compartilha outra profecia que parece ameaçadora: “Eis que este [isto é, Jesus] está destinado à queda e à ressurreição de muitos em Israel, e por sinal de contradição” (Lucas 2:34). Para a primeira (mas não última) vez, Lucas admite que a estrada que leva à a restauração não será suave e direta. Deus enviou Jesus para libertar Israel, mas esse processo será marcado pela “queda e ressurreição de muitos” judeus. Os primeiros discípulos judeus de Jesus esperavam que todos ou pelo menos a maioria de seus irmãos judeus unissem a eles no reconhecimento de Jesus como o legítimo libertador de Israel. Isso não aconteceu. Em vez disso, o messianismo de Jesus tornou-se um assunto contestado entre o povo judeu, “um sinal de oposição”, como Lucas coloca. De acordo com Atos, vários judeus repetidamente “contestam” as reivindicações messiânicas a respeito de Jesus (Atos 13:45: Atos 28:19, 22). Paulo já teve que lutar com essa realidade em seus dias, provando uma fonte de “grande tristeza e incessante dor” (Rm 9:1). A persistente resistência a Jesus também deixou Lucas perplexo e triste. Lucas projeta essa dor e consternação sobre a pessoa de Maria. Simeão, portanto, diz ela que uma espada traspassará a sua própria alma (Lucas 2:35). O tropeço do povo judeu é amarga para Lucas, cortando o coração. Nós podemos até ouvirmos aqui a lamentação que Lucas expressa abertamente em seu evangelho pela destruição de Jerusalém (Lucas 13:34–35; 19:41; 23:27–31). A espada que transpassa o coração de Maria é paralela à “boca da espada” que matará incontáveis almas em Jerusalém (Lucas 21:24). Nada disso traz alegria ou afirmação para Lucas. Simeão nem se alegra nem condena Israel por sua queda. O tom alegre que até agora permeou a narrativa da infância em Lucas momentaneamente diminui como Lucas contempla solenemente a situação atual de Israel, que também abalou muitos seguidores de Jesus.
A profecia de Simeão, no entanto, não pretende rejeitar todas as declarações positivas de esperança sobre a restauração de Israel que são pronunciadas ao longo da narrativa da infância de Jesus em Lucas. Antecipa, ao contrário, o fracasso da maior parte de Israel em receber seu messias prometido. Isso, por sua vez, explica por que a visão espetacular da salvação de Israel proclamada na narrativa da infância ainda não se materializou. A profecia de Simeão, portanto, explica um impasse atual. No entanto, a esperança real para a futura paz e prosperidade de Israel permanece. Simeão fala da “queda e ascensão de muitos [pollōn] em Israel”. A palavra “muitos” ocorre apenas uma vez nesta declaração. Para alguns intérpretes, isso indica que os mesmos “muitos” experimentarão tanto a queda quanto a ascensão de Israel. No entanto, como veremos mais adiante neste livro, Lucas indica que nem todos os indivíduos em Israel que se opõem a Jesus experimentarão a salvação escatológica. A profecia de Simeão, no entanto, contém uma nota positiva: todos os que caíram em Israel ressuscitarão. Em outras palavras, muitos ou a maioria de Israel serão salvos no final. Em última análise, a restauração coletiva de Israel prevalecerá. Essa afirmação é coerente com a observação anterior de Simeão de que a salvação por meio de Jesus brilhará sobre os gentios e glorificará Israel. O evangelho primeiro se espalhará para as nações. Durante este período muitos em Israel podem tropeçar, mas no final Israel se levantará, uma vez que o tempo dos gentios se cumpra (21:24).
Conclusão
A terminologia soteriológica em Lucas 1–2, seja nas declarações de Maria, Zacarias, Simeão ou Ana, não poderia ter uma textura mais judaica. Partes desses hinos e profecias se misturam facilmente com passagens das Escrituras judaicas, como os livros de Isaías e Salmos. Esses materiais falam de salvação de maneiras que evocam a história do êxodo e o anseio pelo fim do exílio. Eles concebem a restauração de Israel em termos coletivos, políticos e nacionais. Como observa Ray Pickett: “Especialmente no contexto da narrativa do nascimento, a linguagem e as imagens da ‘salvação’ invocam a soberania de Deus e despertam esperanças nacionais de libertação da opressão” [Ray Pickett, “Luke and Empire: An Introduction,” in Luke-Acts and Empire, ed. David Rhoads, David Esterline, and Jae Won Lee, PTMS 151 (Eugene: Wipf and Stock, 2011]. Nada na narrativa da infância de Jesus em Lucas sugere que essa salvação para Israel deva ser negada, internalizada, espiritualizada ou transferida para outro reino. A restauração deve ser experimentada por Israel nesta terra. É verdade que o objetivo final da restauração, como aponta o hino de Zacarias, é capacitar Israel a servir a Deus em santidade e justiça (Lucas 1:74–75). Isso também se encaixa perfeitamente com as tradicionais expectativas judaicas de restauração. A devoção ininterrupta a Deus não pode ocorrer, entretanto, se Israel estiver doente, empobrecido, conquistado, subjugado, disperso e sem terra. Portanto, Zacarias espera repetidamente que Deus salve Israel das mãos de seus inimigos (vv. 71, 74). Lucas retém uma concepção holística da salvação que permanece dentro da esfera judaica das expectativas escatológicas: a restauração é tanto espiritual quanto nacional, política, social e física. A profecia de Simeão alude à salvação que se estende além dos corredores israelitas, mas essa expansão universal não anula o eventual cumprimento da restauração de Israel. As respectivas identidades dos gentios salvos e do Israel restaurado permanecem intactas. A salvação escatológica não virá em um tamanho que sirva para todos, mesmo que as nações e Israel sejam salvos pelo mesmo messias. As nações não serão salvas em vez de Israel; elas serão salvos com Israel. De fato, a salvação deles beneficiará Israel. A derrota e a humilhação de Israel serão seguidas de alegria e glória para Israel, pois judeus e gentios adoram o único Deus verdadeiro e confessam o único verdadeiro Senhor.