Moffitt explora as conexões entre perfeição, pureza e ressurreição em Hebreus, sugerindo que as preocupações centrais com a pureza ritual, conforme detalhadas na Lei, são fundamentais para, e não estão em oposição à Cristologia e soteriologia de Hebreus. Para Moffitt, o autor de Hebreus propõe uma polêmica contra a visão da Lei em termos absolutos ou eternos, sem, contudo, descartar ou denegrir a Lei. Assim como os anjos, Moisés, Arão e o sacerdócio, a Lei é considerada boa e reveladora pelo autor de Hebreus.
No desenvolvimento de seu artigo, Moffitt destaca que a continuidade e atualidade da lei são pontos centrais no argumento do autor de Hebreus. Consequentemente, como ressalta Moffitt, o argumento de Hebreus perde completamente sua eficácia se considerarmos que a lei mosaica não está mais em vigor. Segue a tradução devidamente autorizada.
Introdução
No início do primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus, o autor cita o Salmo 44:8 da Septuaginta, referindo-se ao Filho celestial. Deus diz ao Filho em Hebreus 1:9, “Tu amaste a justiça e odiaste a iniquidade (ἐμίσησας ἀνομίαν).” Esse amor pela justiça e aversão à iniquidade é identificado como a razão pela qual Deus unge o Filho e o eleva acima de seus pares. Apesar dessa afirmação sobre a aversão à iniquidade, um aspecto de Hebreus, por vezes apontado como um indicador claro do caráter superior do texto, é o suposto desdém do autor pelos rituais externos da Lei Mosaica. O autor declara em Hebreus 9:9–10 que esses rituais não podem “aperfeiçoar a consciência do adorador, mas tratam apenas de comida e bebida e diversos batismos, regulamentos para o corpo impostos até o tempo de corrigir as coisas” (NRSV). A Lei, sendo “fraca e inútil” (7:18), nunca foi capaz de aperfeiçoar nada (7:19). A alusão do autor ao Salmo 40 em Hebreus 10 até sugere que Deus não deseja rituais sacrificiais externos e terrenos.[1] Agora que Jesus ofereceu um sacrifício superior a qualquer coisa prescrita pela Lei, esta e seus rituais externos foram substituídos. O sacrifício de uma vez por todas de Jesus significa que a Lei e seus sacrifícios tornaram-se obsoletos e podem ser descartados.
De fato, alguns argumentaram que as implicações das afirmações de Hebreus sobre o sacrifício de Jesus desestabilizam e subvertem a lógica sacrificial da Lei de tal maneira que, ao fazer essas afirmações, o autor serra o próprio galho teológico sobre o qual repousa seu argumento ao manter que a morte de Jesus foi o sacrifício supremo.[2]
Por um lado, o autor afirma em 9:22 que a aspersão de sangue é necessária para o perdão. Por outro lado, sua interpretação do Salmo 40 em Hebreus 10 parece anular completamente a ideia de que Deus deseja sacrifícios de qualquer tipo.[3] “A Epístola aos Hebreus”, comenta A.J.M. Wedderburn, “parece persistir resolutamente com terminologia cultual mesmo depois de ter, para todos os efeitos, dado um golpe de misericórdia no modo de pensamento cultual”.[4]
Para Wedderburn, as contradições fundamentais em Hebreus resultam da colisão entre visões de mundo apocalípticas e platônicas que são constitutivas do mundo de pensamento um tanto confuso da epístola. A ideia de que o Filho pré-existente poderia se tornar humano e, então, no momento decisivo e salvífico de sua morte, deixar seu corpo e o reino material para retornar ao céu enquanto ainda se pensa em oferecer seu sangue nesse reino celestial desmonta tanto a teologia sacrificial do autor quanto suas supostas bases platônicas. Tais argumentos são claramente supersessionistas e antinomistas, relegando a lógica da Lei com suas preocupações e rituais materiais ao esquecimento histórico. São também, de acordo com Wedderburn, incoerentes. Como Jesus pode deixar o reino material mas ainda ter seu sangue consigo? Como a cruz pode ser tanto um evento histórico quanto um evento celestial/espiritual? Na verdade, sugere Wedderburn, quanto mais seriamente o autor de Hebreus leva suas afirmações de que a crucificação é o momento celestial da oferta sacerdotal de Jesus, mais instável e incoerente se torna todo o seu projeto teológico.
Em outro lugar, defendi que esse tipo de interpretação de Hebreus está equivocado em vários níveis. Hebreus não pressupõe um dualismo ou cosmologia essencialmente platônica.[5]
Na minha visão, o autor também não afirma que o sacrifício expiatório oferecido por Jesus é redutível ao evento histórico da crucificação. Em vez disso, o autor acredita que o sacrifício expiatório oferecido por Jesus culminou na apresentação dele mesmo, vivo em seu corpo ressuscitado, quando ele ascendeu ao Pai e adentrou o santo dos santos.[6]
Não vou reiterar esses argumentos aqui. Em vez disso, quero examinar a suposição de que o autor rejeita a Lei e sua lógica sacrificial porque os rituais exigidos pela Lei eram eficazes apenas para questões terrenas externas e não podiam promover a purificação interna. A afirmação de Hebreus de que a Lei produzia apenas purificação limitada e externa é surpreendente. Estou persuadido de que Susan Haber está correta quando sugere que tal alegação limita a força purificadora dos elementos cultuais da economia mosaica ao domínio da purificação ritual.[7]
Também estou convencido, no entanto, de que Haber, Wedderburn e outros cometem um equívoco ao deduzir dessa polêmica que o autor deve, portanto, rejeitar as preocupações com a pureza ritual e até mesmo toda a lógica do sacrifício levítico, substituindo-as por uma cristologia preestabelecida centrada na morte de Jesus como o evento derradeiro de salvação. Argumento aqui que a estreita conexão do autor entre perfeição, pureza e a capacidade de se aproximar da presença de Deus, especialmente no caso de Jesus, indica, em vez disso, que as próprias preocupações tanto com a pureza moral/pecado quanto com a pureza ritual, que não é pecado, estão no cerne de sua reflexão soteriológica. O autor confessa que Jesus, embora seja o Filho celestial e esteja sem pecado, teve, no entanto, que ser aperfeiçoado em sua humanidade para se tornar o grande sumo sacerdote, retornar aos reinos celestiais e ministrar ali em nome de seus irmãos e irmãs. Argumento que esse conceito de perfeição se sobrepõe significativamente às preocupações com a pureza ritual judaica.
Se isso estiver correto, então os argumentos do autor sobre os poderes limitados de purificação da Lei não sustentam a inferência adicional de que ele rejeita completamente o ritual sacrificial e a purificação externa, substituindo-os ou superando-os com algo completamente distinto, algo hostil aos rituais levíticos — a alegação de que a morte de Jesus é o meio de purificação interior e moral para outros. Em vez de rejeitar a lógica do sacrifício e da purificação externa encontrada na Lei Mosaica, o autor levou essa lógica ao que ele considera ser sua conclusão final — uma purificação que torna alguém apto a entrar completamente e permanentemente no espaço sagrado da presença celestial de Deus. Sugiro que o autor de Hebreus fala desse tipo de purificação em termos de perfeição. No entanto, antes de examinar Hebreus diretamente, será útil considerar partes de importantes trabalhos sobre os conceitos de pureza ritual e moral judaica que foram produzidos nas últimas décadas.
Os Conceitos de Pureza Ritual e Pureza Moral
Em seu livro “Impurity and Sin in Ancient Judaism”, Jonathan Klawans apresenta a tese de que a concepção bíblica de pureza, assim como a concepção encontrada em algumas expressões do Judaísmo do Segundo Templo e no Judaísmo Rabínico posterior, é melhor compreendida como consistindo em dois sistemas de pureza paralelos — a pureza ritual e a pureza moral.[8] Klawans está envolvido em um argumento cujo escopo completo está fora do alcance deste estudo. No entanto, um breve resumo de sua compreensão desses dois sistemas será útil aqui.
O sistema bíblico de pureza ritual está relacionado a eventos e atividades delineados na Bíblia (veja especialmente Levítico 12–15) que tornam pessoas ou objetos impuros, bem como os meios rituais específicos pelos quais essa impureza pode ser solucionada. É Importante destacar que a impureza ritual é apenas superficial. Ou seja, esse tipo de pureza não tem nada intrinsecamente a ver com a pureza do eu interior, mas apenas com a pureza do corpo.
Na época do período do Segundo Templo, várias situações e atividades eram consideradas como causadoras de impureza ritual para uma pessoa ou objeto.[9] Por exemplo, atravessar um túmulo, tocar em um cadáver ou até mesmo estar na mesma “tenda” que um cadáver tornaria uma pessoa ritualmente impura. O ato sexual, a menstruação e a polução noturna também tornavam pessoas e objetos com os quais entrassem em contato impuros. O nascimento de uma criança tornava uma mulher ritualmente impura. Diversas doenças de pele tornariam uma pessoa impura. Além disso, em muitos casos, pessoas ou objetos em estado impuro poderiam transmitir essa impureza para aqueles que entrassem em contato com eles de certas maneiras.
É importante destacar que nenhuma destas atividades implicava necessariamente em algum tipo de pecado ou falha moral. Dar à luz uma criança, preparar um cadáver para o enterro, desenvolver uma doença de pele, menstruar, ter polução noturna — nada disso era considerado pecaminoso. Todas essas ações, no entanto, geravam uma espécie de força contaminante que, de certa forma, infectava pessoas e objetos, tornando-os impuros, geralmente por meio de contato físico direto. Da mesma forma, tocar em um cadáver, em uma pessoa com doença de pele, em uma mulher menstruada, ou em um homem que tinha ejaculado recentemente, tornava alguém impuro. Contudo, mais uma vez, tocar e, assim, contrair impureza não era visto como um ato pecaminoso.
A solução para essas impurezas rituais geralmente envolvia a passagem do tempo e rituais de purificação, como banhos.[10] Por exemplo, a emissão de sêmen tornava um homem judeu impuro. Ele e aqueles com quem entrava em certo tipo de contato podiam se purificar imergindo-se e aguardando até o pôr do sol (Lev 15:1–11). A remoção das impurezas provenientes do nascimento de uma criança, de uma doença de pele ou de um cadáver demandava processos mais complexos. Uma mulher que dava à luz um filho, por exemplo, ficava impura por sete dias, assim como durante sua menstruação, e depois por mais 33 dias, totalizando 40 dias de impureza (Lev 12:1–5). Ao final desse período, ela deveria oferecer um sacrifício queimado e “oferta pelo pecado” (Lev 12:6–8). Somente então estaria completamente purificada do ato de dar à luz (Lev 12:8). O fato de que os sacrifícios de sangue faziam parte da purificação em casos como o nascimento de uma criança é um tema ao qual retornarei posteriormente. Por ora, o ponto crucial é que os exemplos anteriores evidenciam que a contração de impurezas rituais não era necessariamente uma questão de transgressão moral.
Isso não significa que questões de impureza ritual não pudessem se relacionar ao domínio do pecado. Podiam, especialmente em casos nos quais certas ações faziam com que alguém rituamente impuro transgredisse uma proibição. Um dos principais locais nos quais essa transgressão se tornava possível era o espaço sagrado do templo. Levítico 12:4, por exemplo, deixa claro que uma mulher impura por dar à luz não deveria tocar em objetos sagrados ou entrar no santuário enquanto estivesse em seu estado impuro.
A impureza proveniente de um cadáver também deveria ser mantida fora dos recintos sagrados. O princípio subjacente parece ser que pessoas ritualmente impuras não estavam autorizadas a se aproximar da presença de Deus.[11] Isso provavelmente explica a lógica por trás do fato curioso de que o sumo sacerdote era a única pessoa a quem Levítico diz explicitamente que deveria evitar ser contaminado por um cadáver (Lev 21:10–11). De fato, em relação às pessoas comuns, as regras para os sacerdotes eram mais rigorosas nesse sentido, embora não estivessem sujeitas à proibição estrita que se aplicava ao sumo sacerdote (Lev 21:1–3). A justificativa para essas regras mais rigorosas parece ser que, como os sacerdotes, e o sumo sacerdote em particular, estavam mais próximos da presença de Deus, eles precisavam ser muito mais cuidadosos com seu estado de pureza ritual.[12] Se ficassem impuros e depois se aproximassem da presença de Deus, seriam culpados pelo pecado.
A discussão anterior sugere que o ponto principal em que a impureza ritual se tornava uma preocupação significativa ou ultrapassava o domínio do pecado dizia respeito à entrada no espaço sagrado do santuário e, assim, à proximidade com a presença do Deus que ali habitava. Deus não permitia que pessoas ritualmente impuras se aproximassem demais de Sua presença. Mas por quê? Jacob Milgrom, entre outros, apresenta um argumento convincente de que uma preocupação central em questões de impureza ritual era a presença e o problema da morte. As preocupações com a pureza ritual muitas vezes estavam relacionadas à presença ou aparência da morte. Perda de sangue, sêmen, deterioração do corpo no caso de doenças de pele e, é claro, o cadáver humano, todos sugerem a diminuição da força vital do corpo e, portanto, a presença da morte. Deus não tolerará que a morte seja trazida para Sua presença.[13]
No entanto, a morte não pode ser o único fator em jogo. Hyam Maccoby observa que se a morte fosse a única preocupação no centro da impureza ritual, então é estranho que enquanto a perda de sangue vaginal torna uma mulher impura, presumivelmente pela perda de força vital, sangrar de uma ferida, algo que poderia levar realmente à morte, não o faz.[14] Por que então, além disso, dar à luz torna uma mulher impura? Obviamente, o processo de parto envolve a questão do sangue vaginal, mas se isso fosse tudo, é estranho que a mulher seja considerada impura por várias semanas além dos normais sete dias de impureza menstrual. Parece que o nascimento da criança em si aumenta de alguma forma a magnitude da impureza da mulher. Maccoby sugere, portanto, e penso que corretamente, que o problema não é apenas a morte, mas os ciclos de mortalidade em geral — sexo, nascimento, decadência e morte, funções que se relacionam e até definem a mortalidade, estão no centro da pureza ritual.[15]
O domínio da impureza moral, para continuar com a terminologia de Klawans, difere significativamente do da impureza ritual. Eu observei anteriormente que Klawans está lidando com um argumento muito maior do que pode ser totalmente discutido aqui. Essencialmente, o debate gira em torno de saber se o pecado produz uma força real de contaminação como a impureza ritual faz, ou se a linguagem que fala do pecado produzindo algum tipo de impureza se resume apenas a uma aplicação metafórica da linguagem de impureza ritual ao domínio abstrato da infração moral. Klawans argumenta, persuasivamente na minha opinião, que a categoria de “impureza” deve ser adequadamente aplicada ao pecado porque o pecado, assim como os assuntos rituais mencionados acima, produz uma verdadeira contaminação. Portanto, é apropriado falar de um sistema de pureza moral, assim como é falar de um sistema de pureza ritual. No entanto, esse sistema não é, contudo, idêntico ao da pureza ritual.
Enquanto a impureza ritual não precisava ser, na verdade não podia ser, evitada em última instância, buscava-se evitar a impureza moral, pois esse tipo de impureza resultava em violar uma proibição divina ou deixar de cumprir um comando divino. A discussão anterior mostrou que a impureza ritual era apenas externa e envolvia uma grande contaminação pelo toque físico. Isso não ocorre com a impureza moral. Atos pecaminosos resultam em impureza moral que contamina interiormente o pecador, mas essa impureza não contamina outras pessoas. Assim, não se pode transmitir a impureza moral para outra pessoa ou coisa por contato. Isso não quer dizer, no entanto, que a impureza moral não transmita contaminação. A impureza moral transmite contaminação para a terra de Israel (ver especialmente Levítico 18:24–25), algo que a impureza ritual nunca faz. Além disso, a contaminação causada por algum pecado parece transferir uma impureza diretamente para o espaço sagrado do santuário, mesmo à distância (veja, por exemplo, Levítico 20:3, onde o pecado abominável de um israelita sacrificando uma criança a Moloque, presumivelmente em um dos templos de Moloque, ainda assim contamina o santuário de Deus). A contaminação moral, portanto, infecta o pecador de alguma forma interna, à terra e ao santuário simplesmente pela prática do ato proibido. Essa contaminação não é externa e não é visível aos olhos humanos, mas é ainda assim real e traz consequências reais.
Também de outra forma, esse tipo de contaminação difere da impureza ritual: nem o tempo nem o banho conseguem eliminar completamente a marca do pecado. A purificação moral exige arrependimento, resgate e a realização de sacrifícios. No entanto, em última análise, a contaminação da terra e do templo decorrente da impureza moral pode aumentar a ponto de a terra reagir “vomitando” as pessoas que nela habitam (por exemplo, Levítico 18:26–30), e a presença de Deus pode se afastar do santuário.[16]
Assim, existem diferenças fundamentais entre esses dois sistemas, mas também há paralelos significativos. Klawans resume bem a situação ao escrever:
“Deveríamos compreender que, em ambos os tipos de impureza, lidamos com efeitos percebidos resultantes de processos físicos reais. No caso da impureza ritual, um processo ou evento físico real (por exemplo, morte, menstruação) tem um efeito percebido: uma contaminação impermanente que afeta pessoas e determinados objetos ao alcance delas. No caso da impureza moral, um processo ou evento físico real (por exemplo, sacrifício de crianças ou adultério) tem um efeito percebido diferente: uma contaminação não contagiosa que afeta pessoas, a terra e o santuário.”[17]Em resumo, ambos os sistemas de pureza lidam com impurezas reais que se comunicam a objetos reais, mesmo que as formas como essas impurezas se comunicam e os objetos aos quais são transmitidas difiram notavelmente entre si.
No entanto, há um fato curioso sobre esses dois sistemas de pureza que Klawans pouco aborda: enquanto muitos casos de impureza ritual não exigem nenhum sacrifício para purificação, alguns casos exigem. Também é curioso o fato de que os sacrifícios para purificação em ambos os sistemas, ritual e moral, são os mesmos — as chamadas ofertas de “pecado”. Em outras palavras, quando uma infração moral precisava ser corrigida, a parte culpada tinha que oferecer uma oferta de “pecado”. Esse sacrifício era essencial para a expiação (veja, por exemplo, Levítico 4:27–35). Em certos casos de impureza ritual, no entanto, a pessoa que precisava de purificação também tinha que oferecer uma oferta de “pecado” que também efetuava a expiação por ela (veja especialmente Levítico 12:6–8, onde a mulher que deu à luz precisa oferecer uma oferta de “pecado” pela qual o sacerdote fará expiação por ela).
A teoria de Jacob Milgrom sobre impureza ritual mencionada anteriormente explica essa situação peculiar ao postular que, assim como a impureza moral, algumas impurezas rituais também contaminam o santuário. Embora não seja universalmente aceita,[18] essa teoria faz muito sentido neste ponto. Milgrom argumenta que tanto as impurezas rituais graves (como dar à luz e a impureza de cadáver) quanto os pecados/impureza moral contaminam o santuário e seus altares, mesmo a certa distância. As impurezas mais sérias penetram mais profundamente nos recintos sagrados do que as mais leves. Isso explicaria a necessidade de sacrifícios de sangue em casos de pecado e em certas impurezas rituais, como o nascimento. O sangue, argumenta Milgrom, tem o poder de purificar os altares e os recintos sagrados das impurezas que aderem a eles como resultado de impurezas morais e rituais.[19]
Como evidência, Milgrom aponta casos em que o sangue sacrificado é aplicado a um altar ou a outra parte do santuário, e o objeto do verbo de expiação, “kipper”, é o santuário ou o altar ao qual o sangue é aplicado. Em Levítico 16:15–20, por exemplo, o lugar santo, a tenda da reunião e os altares são “expiados” por meio da aplicação de sangue. A ação expiatória, em outras palavras, é a da purificação. O detergente ou agente que efetua essa purificação é o sangue.
É Importante destacar que Levítico 16:16 identifica tanto a impureza (ou seja, impureza ritual) quanto os pecados do povo como as fontes de contaminação que tornam necessária a purificação anual. A clara implicação disso é que tanto as impurezas rituais quanto as morais do povo contaminaram os recintos sagrados, que consequentemente precisam de limpeza/purificação. Essa limpeza regular era essencial para a relação da aliança. Se essa manutenção contínua não fosse realizada, o nível de impureza aumentaria a ponto da presença de Deus se afastar (veja, por exemplo, Ezequiel 5:11). A aplicação de sangue neste espaço sagrado era um meio necessário para efetuar a purificação do santuário.
Entretanto, onde a teoria de Milgrom parece mais fraca é na relação entre a purificação dos altares e dos espaços sagrados e a da pessoa para quem os sacrifícios estão sendo oferecidos. Milgrom argumenta que o sangue purifica objetos por meio de aplicação direta e física. Como o sangue não é aplicado à pessoa que traz o sacrifício, Milgrom conclui que o sacrifício não desempenha um papel na purificação do ofertante. O sacrifício é necessário apenas para purificar os altares contaminados pelos pecados e impurezas rituais do povo. No caso do pecado, o ofertante é purificado da contaminação do pecado ao sentir culpa e arrepender-se.[20] Em assuntos rituais, o ofertante é purificado pelo tempo e os banhos.
Roy Gane fez uma crítica contundente contra Milgrom exatamente nesse ponto.[21] Gane aponta para textos que de fato relacionam a oferta de sacrifício com a purificação do ofertante. Em Levítico 12:7, por exemplo, a mulher que deu à luz é finalmente considerada pura de (min) sua impureza ritual por meio dos sacrifícios que ela oferece. Da mesma forma, em Números 8:12, 21, os levitas são purificados por seus sacrifícios. O sacrifício, em outras palavras, parece de fato remover a impureza do ofertante. Essa evidência sugere que a teoria de Milgrom está apenas parcialmente correta. A teoria de Milgrom sobre a transmissão de impurezas para os lugares sagrados a partir de uma distância está correta, mas sofre por ser unidirecional. Assim como não é necessário estar em contato com os espaços sagrados para transmitir impureza a eles, também, argumenta Gane, a pureza efetuada pela aplicação de sangue aos altares pode ter o efeito de purificar também os ofertantes. O sangue, ou seja, não precisa ser aplicado diretamente às pessoas para que a pureza que atua no santuário seja reciprocamente transmitida a eles.
Outro interlocutor digno de menção aqui é Jay Sklar, em seu livro “Sin, Impurity, Sacrifice, Atonement: The Priestly Conception”. Sklar observa que, embora Klawans destaque corretamente as distinções entre os sistemas de impureza ritual e moral, o fato de que os mesmos sacrifícios (especialmente a oferta de “pecado”) são necessários em casos de algumas impurezas rituais, assim como são necessários para impurezas morais, sugere que, nesse ponto, os dois sistemas convergem.[22] Isso fica ainda mais claro ao considerar os resultados finais de ambos os tipos de impurezas. Ou seja, tanto a impureza ritual quanto a impureza moral criam uma contaminação que coloca o povo em perigo em relação a Deus e ameaça a disposição de Deus de permanecer presente no santuário.
Sklar argumenta ainda que o termo “kipper”, usado para resolver ambos os tipos de impureza, não deve ser interpretado rigidamente como significando apenas purificação em questões de pureza ritual e apenas resgate em questões de pureza moral. Em contextos sacrificiais, o meio para efetuar tanto o resgate quanto a purificação ritual é a aplicação do sangue do sacrifício, especialmente o sangue da oferta de “pecado”. Assim, Sklar sugere que a expiação sacrificial não pode ser reduzida apenas o resgate ou purificação, mas deve ser compreendida como incluindo efeitos tanto de resgate quanto de purificação.[23]
Essa breve discussão dos sistemas de pureza ritual e moral retratados na Bíblia Hebraica pode agora ser resumida. A pureza ritual é principalmente uma questão da condição externa de uma pessoa. Esse tipo de contaminação é contagioso e geralmente se espalha por contato. Fundamentalmente, a impureza ritual parece estar relacionada a questões de mortalidade. Além disso, a impureza ritual é um grande obstáculo quando alguém tenta se aproximar da presença de Deus. Deus não permite que pessoas ritualmente impuras se aproximem de Sua presença. Trazer a mortalidade impura para o espaço sagrado de Deus é considerado como um pecado. A necessidade de as pessoas estarem em um estado ritualmente puro parece, portanto, estar principalmente relacionada a tornar a humanidade apta a se aproximar da presença de Deus.
A pureza moral está relacionada à obediência aos mandamentos de Deus. A violação dos mandamentos divinos resulta em impureza moral. A impureza moral de uma pessoa não é externa e não é contagiosa. No entanto, embora a pureza ritual e a pureza moral sejam distintas, ambas problematizam a relação entre Deus e Seu povo. A impureza ritual impede que o povo se aproxime de Deus. A impureza moral ameaça sua capacidade de habitar na terra, que é contaminada pelo pecado, e os ameaça com a ira punitiva de Deus. Ambos os tipos de impureza também impedem que Deus e Seu povo habitem juntos, pois ambos transmitem contaminação ao santuário. O santuário precisa de purificações regulares para que a presença de Deus permaneça lá.
Além disso, parece ser o caso que a expiação sacrificial, no sentido mais amplo — isto é, o estado que resulta da solução dos problemas de impureza moral e ritual, de modo que Deus e a humanidade possam habitar juntos — exige a remoção da ameaça da ira de Deus por meio de reconciliação ou resgate e a purificação do povo, da terra e do santuário. A expiação completa, em outras palavras, é efetuada quando a contaminação de ambas as impurezas morais e rituais é eliminada.
Mas o que isso tem a ver com Hebreus? Eu demonstro a seguir que o significado da linguagem de perfeição em Hebreus se sobrepõe em alguns pontos com ambos esses conceitos de pureza. Para ser mais específico, o autor às vezes usa a linguagem de perfeição para significar a retificação completa e duradoura das impurezas que separam Deus e a humanidade. Se isso estiver correto, então o fato de que Jesus precisou ser aperfeiçoado sugere que o escritor tem em mente preocupações com a pureza. No entanto, o fato de que Jesus, mesmo sem pecado/impureza moral, ainda precisou ser aperfeiçoado implica que, mesmo sendo o Filho celestial, sua humanidade mortal precisava de purificação antes que ele pudesse se aproximar do Pai no espaço celestial sagrado e servir como sumo sacerdote para seu povo. Isso, no entanto, implica que o escritor não descartou a importância dos tipos de questões externas tão centrais para o sistema de pureza ritual detalhado na Lei.
Pureza como Perfeição em Hebreus
Que o autor de Hebreus pensa em termos de pureza moral é algo claro em Hebreus 1:3. Lá, ele afirma que “após realizar a purificação dos pecados” (καθαρισμὸν τῶν ἁμαρτιῶν ποιησάμενος), o Filho tomou seu lugar à direita de Deus. Dada a representação de Jesus em Hebreus como o sumo sacerdote que entra no santo dos santos celestial, a colocação dos termos “purificação” e “pecado” provavelmente sinaliza uma alusão à declaração em Levítico 16:30 na Septuaginta, que diz que o trabalho expiatório do sumo sacerdote no Dia da Expiação serve para purificar o povo de todos os seus pecados (καθαρίσαι ὑμᾶς ἀπὸ πασῶν τῶν ἁμαρτιῶν ὑμῶν).
O autor de Hebreus aborda de maneira semelhante ao mencionado acima o conceito de pureza ritual. Ele destaca uma característica peculiar em Hebreus, que é a afirmação de que os sacrifícios prescritos na Lei não realizaram uma purificação moral, mas apenas proporcionaram uma purificação limitada do corpo. Seguindo a linha de raciocínio de Haber, Hebreus parece ter reduzido a purificação na Lei à esfera ritual. No entanto, isso não implica que o autor esteja rejeitando completamente a lógica da purificação ritual e sua ênfase em aspectos externos e corporais. O uso da linguagem de perfeição pelo autor sugere que ele não está descartando essa lógica.
No capítulo 7 de Hebreus, o autor estabelece uma estreita conexão entre perfeição e imortalidade. Como mencionei anteriormente, isso é uma pista de que o autor pressupõe a ressurreição corporal de Jesus em sua argumentação.[24] A lógica do argumento neste capítulo opera por meio de uma contraposição entre a Lei, que associa a legitimidade e a autoridade sacerdotais à linhagem levítica, e o poder da ressurreição de Jesus. A ligação da Lei entre linhagem/genealogia e sucessão sacerdotal legítima está intrinsecamente ligada à realidade da morte. O autor enfatiza explicitamente esse ponto em Hebreus 7:8 e 7:23, e implicitamente o sugere ao argumentar que o tipo de vida que Melquisedeque e Jesus possuem legitima seu status sacerdotal, independentemente de suas genealogias (cf. Hebreus 7:3, 16, 24–25). A essência do argumento parece ser que Jesus, enquanto ser humano, tornou-se o grande sumo sacerdote que é reconhecido quando, em sua humanidade, foi ressuscitado dos mortos para nunca mais morrer.
À medida que o autor conclui a argumentação do capítulo 7 e faz a transição para outro ponto, ele reafirma este contraste crucial entre a Lei e a ressurreição de Jesus em termos diferentes, ao dizer: “A Lei nomeia homens como sumos sacerdotes que têm fraquezas, mas a palavra do juramento, que veio após a Lei, nomeia como sumo sacerdote um Filho que foi tornado perfeito para sempre” (7:28). Dado o contraste na argumentação anterior de Hebreus 7, podemos interpretar 7:28 da seguinte forma: A Lei nomeia como sumos sacerdotes homens sujeitos à morte, enquanto o juramento do Salmo 110:4 nomeia Jesus, o Filho, que não está sujeito à morte e, portanto, vive para sempre. A ênfase da Lei na genealogia praticamente comprova que os sacerdotes levitas não podiam escapar da morte, pois a lógica intrínseca da genealogia pressupõe a realidade da morte. Este é um elemento importante de sua “fraqueza” e da “fraqueza” da Lei. Em contraste, a perfeição do Filho significa que ele não compartilha dessa fraqueza. Ele agora vive de tal maneira que nunca mais estará sujeito à morte.
Ao relacionar a Lei com a morte e Jesus com a vida, o autor faz um movimento análogo ao de Paulo ao pensar sobre a Lei. Parece que tanto Paulo quanto Hebreus concordam que a Lei não foi capaz de trazer vida ao povo de Deus. Paulo vai além de Hebreus ao argumentar que a Lei, embora boa, tornou-se uma ferramenta de morte. No entanto, assim como Paulo, Hebreus parece estar trabalhando com um dualismo apocalíptico que vê a criação como de alguma forma separada da presença de Deus porque está contaminada com pecado, morte e corrupção. A Lei está inextricavelmente ligada ao polo desse dualismo que está sujeito à morte e àquele que detém o poder da morte — o diabo (cf. Heb 2:14).
Se isso estiver correto, então, quando o autor de Hebreus argumenta que a Lei nunca tornou nada perfeito, ele está afirmando que a Lei nunca foi capaz de mover permanentemente o povo de Deus de sua condição presente (mortalidade) para a plenitude da presença de Deus (imortalidade). Em outras palavras, a Lei nunca resolveu completamente ou lidou com o problema da morte. Na verdade, o problema da morte está, de certa forma, intrínseco à lógica da Lei, especialmente nos códigos de pureza ritual e nas estipulações genealógicas relacionadas ao serviço sacerdotal. Isso também significa que a Lei nunca purificou as pessoas a ponto de sua sujeição à mortalidade não ser mais um problema que as impedia de entrar na plenitude da presença de Deus. Isso, sugiro, é o que o autor quer dizer quando afirma que as regulamentações da Lei em relação à genealogia e ao sacerdócio são “fracas e inúteis”. O que a Lei, em sua fraqueza, não pôde fazer, o autor de Hebreus argumenta que o Filho realizou ao ressuscitar e ascender aos céus como o grande sumo sacerdote.
Não pretendo aqui sugerir que o significado de perfeição em Hebreus se esgota ou se reduz à ideia de imortalidade. No entanto, estou sugerindo que essas nuances na argumentação do autor indicam que as preocupações com a pureza ritual estão próximas em algumas de suas utilizações da linguagem de perfeição. De fato, a presença de uma noção de pureza já é sugerida em seu contraste em 7:19 entre a incapacidade da Lei de aperfeiçoar qualquer coisa e a melhor esperança em Jesus que capacita seus seguidores a se aproximarem de Deus. Como mencionado anteriormente, os códigos de pureza ritual em Levítico são projetados para permitir que as pessoas se aproximem de Deus tornando sua mortalidade adequada para se aproximar de Sua presença.
Hebreus 9:9 e 9:14 confirmam substancialmente que perfeição e pureza se sobrepõem para o autor. Nestes versículos, os termos perfeição e purificação são usados de forma intercambiável. Em 9:9, o autor afirma que os dons e sacrifícios oferecidos sob a Lei não podiam aperfeiçoar a consciência dos adoradores. Em 9:14, por outro lado, ele destaca que o sangue de Cristo purifica a consciência. Isso é uma evidência sólida de que perfeição e pureza podem ser usados como sinônimos em Hebreus. De forma igualmente clara, no entanto, essas declarações implicam um conceito de pureza moral (como em 1:3), e não pureza ritual.
No entanto, a situação é diferente no caso de Jesus. O autor caracteriza a vida de Jesus como “sem pecado” (4:15). Jesus, em outras palavras, era moralmente puro. Ele não precisava oferecer nenhum sacrifício por si mesmo para lidar com seu próprio pecado (7:27). No entanto, o autor afirma claramente ao longo da epístola que Jesus foi aperfeiçoado, implicando uma necessidade para essa perfeição (2:10; 5:9; 7:28). O que poderia significar que Jesus, o Filho pré-existente de Deus, precisava ser feito perfeito?
Muitos argumentos foram apresentados no passado para explicar essa linguagem.[25] Dada a conexão entre perfeição e pureza em Hebreus, que foi mencionada anteriormente, sugiro que a linguagem de perfeição aplicada a Jesus também se aproxima do âmbito da pureza.[26] No entanto, no caso de Jesus, o Filho de Deus, a pureza em questão não está no domínio moral, mas no domínio ritual. Se, como argumentei, a perfeição de Jesus está relacionada à sua ressurreição para uma humanidade imortal,[27] então o conceito de pureza que se aplica a Jesus teria a ver com a pureza de seu corpo. Embora ele fosse o Filho, em sua humanidade, ele era plenamente mortal e, como tal, estava sujeito à impureza ritual. Antes de sua ressurreição, Jesus, o Filho de Deus, estava sujeito à morte e, de fato, morreu como homem.
Em outras palavras, o problema fundamental da mortalidade e a maneira como a morte impedia a humanidade de entrar completamente na presença de Deus se aplicavam à humanidade imperfeita/mortal de Jesus. Essa lógica se assemelha notavelmente à lógica da purificação ritual. Assim, quando, após sua morte, Jesus foi aperfeiçoado, parece que o ponto é que ele foi completamente purificado ritualmente. A humanidade de Jesus foi, em outras palavras, concedida à melhor ressurreição prometida em Hebreus 11:35. Nesse momento de perfeição, a humanidade de Jesus não era mais mortal, não estava mais sujeita à morte. Jesus, portanto, nunca mais enfrenta o problema da impureza ritual. Devido a essa perfeição, ou seja, porque sua humanidade foi completamente e irreversivelmente purificada, ele foi capaz de fazer o que nenhum outro sumo sacerdote fez — ascender ao espaço sagrado do santuário celestial, se aproximar da plenitude da presença de Deus e, o mais importante, permanecer lá.
Hebreus, A Lei e o Supersessionismo
Se as conclusões anteriores estiverem corretas em relação à lógica do autor, isso tem implicações importantes para as questões mais amplas de supersessionismo em Hebreus e para a linguagem aparentemente desfavorável usada em relação à Lei. Como mencionado antes, sugeri que, para o autor de Hebreus, as limitações da Lei decorrem do fato de que a própria Lei, de alguma forma, está sujeita à morte e à corrupção. A ideia central é que a autoridade e a legitimidade da Lei estão vinculadas a uma era que será superada com a chegada da era/mundo vindouro.
Essa perspectiva é crucial porque sugere que os comentários do autor sobre as limitações da Lei em relação à perfeição não significam uma rejeição da legitimidade e autoridade da Lei em sua esfera apropriada. Em um versículo frequentemente negligenciado nos comentários modernos sobre Hebreus, o escritor destaca que a autoridade da Lei impede que Jesus seja um sacerdote na terra. Em Hebreus 8:4, é dito que “Se ele [Jesus] estivesse na terra, nem mesmo seria sacerdote, porque existem aqueles que oferecem os dons de acordo com a Lei.” O escritor leva a sério o fato de que Jesus agora passou pelos céus e está na presença de Deus. Por essa razão, Hebreus consistentemente coloca o trabalho sacerdotal de Jesus nos céus. Na terra, a Lei impede que ele exerça legitimamente o papel sacerdotal e, consequentemente, sirva nos ministérios sacerdotais (Hebreus 8:4).
Essa afirmação sugere que o autor não está simplesmente descartando a autoridade da Lei. Nas esferas celestiais e na era vindoura, as limitações da Lei, especialmente no que diz respeito à pureza ritual, não se aplicam mais. De maneira semelhante ao argumento de Paulo em Gálatas 3, essa ideia depende de uma divisão apocalíptica judaica para situar a Lei em um período/era específico, um local e tempo definidos que antecedem a era eterna. Pelo menos algumas das regras da Lei seguirão o destino do restante do reino corruptível ao qual está tão ligada (cf. Hebreus 1:13–14; 8:13; 12:27). Quando o reino terreno for finalmente abalado pela última vez e apenas as realidades inabaláveis permanecerem, a Lei será “metatetizada” ou alterada (cf. Hebreus 7:11–12, 18–19; 8:13).
No entanto, o conceito de “supersessionismo” não descreve precisamente esse tipo de lógica. A ideia de que a perfeição implica na vida purificada e duradoura da ressurreição e na era eterna vindoura eliminaria as restrições de pureza ritual da Lei de maneiras significativas. Que contaminação pela morte e corrupção está presente ou mesmo possível para alguém que vive em um estado tão imortal? Quando não há possibilidade de impureza decorrente da mortalidade, a necessidade de rituais de purificação corporal simplesmente desaparece.
Conclusão
Dentro da economia mosaica, tanto a impureza moral quanto a impureza ritual impediam a plena comunhão e convívio entre Deus e seu povo. Esses problemas eram mitigados por meio de sacrifícios e outros rituais. No entanto, o autor de Hebreus raciocina: como seria melhor a situação em que a contaminação moral/pecado fosse completamente apagada, nunca mais se acumulando, e em que a impureza ritual nem sequer pudesse ser contraída? Esta situação é, em alguns pontos, chamada de “perfeição” em Hebreus. Os sacrifícios são bons em seu tempo e lugar. Deus ficou satisfeito com o sangue aspergido que Abel ofereceu a ele (Hebreus 12:24). Da mesma forma, Deus se agrada do sacrifício que o Filho ofereceu a ele. Mas como seria melhor a situação em que os sacrifícios para perdão e purificação não fossem mais necessários porque os problemas que eles resolvem deixam de ser problemas? Isso, sugiro eu, é a lógica do argumento de Hebreus. Os elementos rituais da Lei são certamente relativizados, mas isso não significa que sejam de alguma forma ruins, intrinsecamente negativos, ou que Hebreus não aplique a lógica desses sacrifícios a Jesus. Os rituais da Lei mosaica são limitados, mas ainda assim são bons. Para o autor de Hebreus, parece que, uma vez que alguém foi aperfeiçoado (ressuscitado) e conseguiu entrar plenamente na plenitude da presença de Deus, a necessidade dos rituais de purificação e perdão da Lei desaparece.
Em resumo, Jesus era o Filho imaculado de Deus, mas ainda assim estava limitado pela Lei quando estava na Terra e precisava ser aperfeiçoado em sua humanidade antes de poder retornar aos reinos celestiais. Portanto, as conexões entre perfeição, pureza e ressurreição em Hebreus sugerem que as preocupações que estão no centro da pureza ritual, conforme detalhadas na Lei, são fundamentais para, não em oposição a, cristologia e soteriologia de Hebreus. Há aqui uma polêmica contra a visão da Lei em termos absolutos ou eternos, mas não uma que descarte ou denigra a Lei. Assim como os anjos, Moisés, Arão, o sacerdócio, a Lei é boa e reveladora para o autor de Hebreus, mas nem a Lei nem essas outras figuras abriram o caminho para que o povo de Deus entrasse na plenitude da herança que, segundo o escritor de Hebreus, lhes foi prometida. Isso é um aspecto central do que o autor quer dizer quando destaca a perfeição de Jesus e a forma como o que ele oferece é melhor do que o que veio antes.
[1] Por exemplo, Wilfried Eisele argumenta que a plena obediência de Cristo à vontade de Deus em Hebreus 10 torna os rituais terrenos e ofertas inúteis: “Pois todas as tentativas de santificação de nossa parte seriam eventos terrenos sem sentido” (Ein unerschütterliches Reich: Die mittelplatonische Umformung des Parusiegedankens im Hebräerbrief, BZNW 116 [Berlim: De Gruyter, 2003], 105). Hugh Montefiore sugere que a crítica ao sacrifício em Hebreus 10 não pode ser limitada a rituais específicos, mas indica uma “desaprovação divina mais geral da Lei em si” (A Commentary on the Epistle to the Hebrews, HNTC [São Francisco: Harper & Row, 1964], 168).
[2] A.J.M. Wedderburn, “Sawing off the Branches: Theologizing Dangerously Ad Hebraeos,” JTS 56 (2005): 393–414.
[3] Wedderburn, “Sawing off the Branches,” esp. 401–4.
[4] Wedderburn, “Sawing off the Branches,” 409.
[5] David M. Moffitt, “Serving in the Tabernacle in Heaven: Sacred Space, Jesus’s High-Priestly Sacrifice, and Hebrews’ Analogical Theology,” in Hebrews in Contexts, ed. Gabriella Gelardini and Harold W. Attridge, AJEC 91 (Leiden: Brill, 2016), 259–80.
[6] David M. Moffitt, Atonement and the Logic of Resurrection in the Epistle to the Hebrews, NovTSup 141 (Leiden: Brill, 2011)
[7] Susan Haber, “From Priestly Torah to Christ Cultus: The Re-Vision of Covenant and Cult in Hebrews,” JSNT 28 (2005): 105–24. Para uma análise detalhada e crítica do ensaio de Haber, consulte David M. Moffitt, “Wilderness Identity and Pentateuchal Narrative: Distinguishing between Jesus’ Inauguration and Maintenance of the New Covenant in Hebrews,” in Muted Voices of the New Testament: Readings in the Catholic Epistles and Hebrews, ed. Katherine M. Hockey, Madison N. Pierce, and Francis Watson, LNTS (London: Bloomsbury T&T Clark, 2017).
[8] Klawans, Impurity and Sin in Ancient Judaism (Oxford: Oxford University Press 2000), 21–32.
[9]Para uma discussão bem fundamentada sobre os tipos de atividades e circunstâncias que provavelmente seriam considerados para tornar alguém ritualmente impuro no período do Segundo Templo, veja E.P. Sanders, Judaism: Practice and Belief, 63 BCE–66 CE (London: SCM Press, 1992), 217ff.
[10] Veja Sanders, Judaism, 72. Notas do tradutor — A palavra em inglês é “washings”, que se traduz como “lavagens”, mas decidi traduzi-la como “banhos”.
[11] Sanders (Judaism, 70–72). Portanto, Sklar sugere que a expiação sacrificial não pode ser reduzida nem a resgate nem a purificação, mas deve ser entendida como incluindo tanto os efeitos de resgate quanto de purificação.
[12] Veja Sanders, Judaism, 71–72.
[13] Veja suas discussões sobre isso em, Jacob Milgrom, Leviticus 1–16: A New Translation with Introduction and Commentary, AB 3 (New York: Doubleday, 1991), 46, 767, 1002–3
[14] Hyam Maccoby, Ritual and Morality: The Ritual Purity System and Its Place in Judaism (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), 31.
[15] Maccoby, Ritual and Morality, 49–50, 207; cf. Sanders, Judaism, 217.
[16] Este último ponto é enfatizado de maneira especial em Jacob Milgrom, “Israel’s Sanctuary: The Priestly ‘Picture of Dorian Gray,’” RB 83 (1976): 390–99.
[17] Klawans, Impurity and Sin, 34.
[18] Veja, por exemplo, as diversas críticas à teoria de Milgrom em Maccoby, Ritual and Morality.
[19] Veja Milgrom, Leviticus 1–16, 254–58, 711–12.
[20] Milgrom, Leviticus 1–16, 254–56, 1056–58.
[21] Roy Gane, Cult and Character: Purification Offerings, Day of Atonement, and Theodicy (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2005), 106–43.
[22] Jay Sklar, Sin, Impurity, Sacrifice, Atonement: The Priestly Conceptions, HBM 2 (Sheffield: Sheffield Phoenix, 2005), 144–50, 149.
[23] Para uma versão resumida de seu argumento, consulte Sklar, “Sin and Impurity: Atoned or Purified? Yes!” in Perspectives on Purity and Purification in the Bible, ed. Naphatali S. Meshel, et al, LHB/OTS 474 (London: T&T Clark, 2008), 18–31.
[24] Moffitt, Atonement and the Logic of Resurrection, 194–208.
[25] Por exemplo, Paul J. Du Plessis argumenta que a linguagem de perfeição em Hebreus se relaciona principalmente à consagração sacerdotal de Jesus, embora não exclua seu desenvolvimento subjetivo e existencial como ser humano (ΤΕΛΕΙΟΣ: The Idea of Perfection in the New Testament [Kampen: J.H. Kok, 1959], especialmente 212–17, 243). David Peterson questiona essa ideia e outras, sugerindo, em vez disso, que o sofrimento incarnado, a morte salvadora e a exaltação de Jesus devem ser vistos como um processo que o torna apto para a vocação de ser um sumo sacerdote misericordioso que pode salvar completamente seu povo (Hebrews and Perfection: An Examination of the Concept of Perfection in the “Epistle to the Hebrews,” SNTSM 47 [Cambridge: Cambridge University Press, 1982], especialmente 49, 67, 73, 103). David A. DeSilva vincula a perfeição de Jesus à sua “chegada ao seu destino celestial” (Perseverance in Gratitude: A Socio-Rhetorical Commentary on the Epistle “to the Hebrews” [Grand Rapids: Eerdmans, 2000], consulte 197–99, aqui 199). Kevin B. McCruden argumentou mais recentemente que a linguagem de perfeição pode carregar a noção de atestação pública, definitiva/oficial de uma transação (Solidarity Perfected: Beneficent Christology in the Epistle to the Hebrews, BZNW 159 [Berlin: DeGruyter, 2008], 26–37). No contexto de Hebreus, isso implica que a linguagem de perfeição é principalmente uma linguagem destinada a comentar de maneira pública e definitiva sobre o caráter benéfico e pessoal do sacrifício sacerdotal de Jesus (69, 117–21, 139).
[26] Isso foi observado em várias ocasiões. William G. Johnsson, por exemplo, argumenta que, do ponto de vista cultual, a linguagem de perfeição em Hebreus tem em parte a ver com permitir o acesso ao culto celestial (Defilement and Purgation in the Book of Hebrews [Ph.D. diss., Vanderbilt University, 1973], 260–63).
[27] Moffitt, Atonement and the Logic of Resurrection, 198–214.
VEJA TAMBÉM
O SACRIFÍCIO DE JESUS E A LÓGICA MOSAICA EM HEBREUS, David M. Moffitt
Uma Leitura Pós-Supersessionista de Hebreus, Jesper Svartvik
Hebreus e a Lei Judaica, Matthew Thiessen
Pierce, M. N. (2023). The World Spoken Through the Son: Divine Speech and Creation in the Epistle to the Hebrews. Journal for the Study of the New Testament, 46(1), 37–58. https://doi.org/10.1177/0142064X231190083
Moffitt, D M 2016, Serving in the tabernacle in Heaven : sacred space, Jesus’s high-priestly sacrifice, and Hebrews’ analogical theology, Hebrews in contexts. Ancient Judaism and early Christianity, vol. 91, Brill, p. 259–279. https://doi.org/10.1163/9789004311695_015